segunda-feira, outubro 31, 2005

Reminiscências II

O céu e a terra. Era sua principal companhia de todos os momentos naquele lugar.

Era um dos dias finais de primavera, quando as nuvens carregadas parecem trazer o verão cada vez mais depressa, quando as tempestades eram cada vez mais freqüentes. Sentiu um arrepio percorre-la ao pensar em tempestades. Aquelas nuvens pretas no céu eram por si só ameaçadoras demais para ela, o espetáculo elétrico proporcionado pela natureza tinha dimensões apocalípticas a seus olhos. Fechou os olhos e abriu depressa para continuar olhando pela janela.

Horizonte... Nunca entendera direito a dimensão de tal palavra antes de morar naquele lugar. Podia ver o ponto onde céu e terra se tocavam, lá longe... O mundo era muito mais grandioso do que podia imaginar, seu encanto com a vista tão distante apenas a lembrava de que havia muito mais para ver e viver do que o aparente.

Sonhava em ser mais velha... Os doze anos eram suficientes apenas para admirar o horizonte, não serviam ainda para rumar de encontro ao ponto onde o céu tocava a terra. Gostava de se imaginar com seus dezenove ou vinte anos, como seria sua aparência, seu jeito de ser. Queria ser bonita e usar roupas bonitas, mas ser mais conhecida por sua inteligência. Talvez nessa idade já teria terminado de escrever seu romance, não seria linda uma noite de estréia?

Mas tinha tanta vergonha de mostrar aquilo que escrevia para os outros! Se não estava no computador naquela hora era justamente por isso, por saber que havia mais gente no quarto e o fato a incomodar, por mais que essas pessoas não se importassem muito com o que quer que estivesse escrevendo.

Continuou a olhar pela janela. Por alguma razão, era uma de suas principais diversões passar as horas ali, apenas sentindo a brisa em seu rosto ou vendo algum carro passar e quebrar a monotonia. Morava em um prédio, imediatamente em sua frente havia a cobertura de outro prédio, desocupada. Havia também três casas grandes que chamavam sua atenção: a primeira a esquerda tinha um quintal enorme todo cheio de azulejos e um cachorro um tanto barulhento. A da direita era grande, mas mal-ocupada: uma piscina pequena, um galinheiro próximo, uma casa velha de apenas um andar. Era engraçado notar que todos os anos, na Sexta-Feira Santa, o dono da casa servia um churrasco aos familiares. A casa do meio, todavia, era a que detinha sua atenção por mais tempo sempre que as observava... Tinha uma piscina enorme, ao seu redor o chão forrado de grandes pedras de cor cinza, além de um jardim cheio de plantas bonitas e bem-cuidadas. Era uma bela e moderna casa de dois andares, pelo que observara, de um casal de mais idade que de tempos em tempos recebia os filhos adultos. Desejava ter uma casa assim quando fosse uma profissional e pudesse receber seus filhos.

Pouco adiante, uma das avenidas mais agitadas da cidade. Era onde se reuniam os barzinhos e os apreciadores de música sertaneja, principalmente aquelas colocadas nas caixas de som dos carros nos domingos de tarde. Se nunca fora muito simpática a sertanejo, as constantes perturbações de seu sossego dominical faziam com que definitivamente não apreciasse o estilo.

Podia ver também uma simpática agência bancária. Era divertido quando havia greve dos bancários ou assaltos – duas vezes por semana religiosamente. Quando não via movimento nos filmes dos quais tanto gostava, era ali que procurava sua dose semanal de ação.

Um raio iluminou uma das nuvens, fazendo com que todo o seu corpo tremesse. Não podia chover, não queria que chovesse, não enquanto estivesse ali... Tinha vontade de se esconder debaixo da cama ou dentro de um dos armários, mas essa seria mais uma das chuvas que teria de enfrentar...

Havia um livro sobre a escrivaninha próxima, eram lições de matemática. Sobre elas, alguns desenhos de vestidos. Como gostaria de ter sua própria coleção de moda algum dia! Ela seria altamente glamourosa e tão elegante que qualquer mulher do mundo sonharia em vestir uma peça assinada por ela! Tinha de terminar os exercícios também, no dia seguinte haveria aula logo cedo e seria bom que tudo estivesse pronto a tempo.

Sorriu antes de fechar a veneziana da janela e sentar-se na cadeira cor-de-rosa em um pulo. Era bom dar uma última olhadinha naquele horizonte enorme que representava tudo aquilo que desejava para o futuro!

***
Desculpem, mas acho difícil exprimir a idéia de "anoitecer de junho ter cheiro de canela" em um texto. ^^

E até sexta. Espero. =)

segunda-feira, outubro 24, 2005

Profetisa

Ajoelhei-me diante de seu altar. Impura, mulher impura e indigna! Indigna de clamar seu nome entre meus dentes enquanto desesperava-me, a mulher desejada que negara um dom sagrado! O corpo a tremer pelo desespero, pensamentos e mãos vacilantes na esperança daquele ser o único lugar seguro.

As chamas, finalmente materializadas, finalmente muito mais do que apenas visões esparsas de um destino certo! Mas não era isso o que queria? Não fui um brinquedo em suas mãos, a tola que diria as verdades – apenas para rirem delas? Sofram por sua própria ignorância, troianos!, era o que parte de meu ser dizia. Mas não adiantava, era o sangue de meu povo que lavava os portões, era toda a tradição de séculos alimentando as chamas.

Eram meus irmãos mortos pelos belos olhos de uma mulher proibida.

“A mais bela dentre as mulheres”. Helena. Atingida pelo maior poder de todos: cega pelo amor, assim como meu irmão. Não posso julgá-los por isso. Talvez seja a maior das forças deste mundo, talvez sua deusa seja realmente a mais poderosa, talvez pelos seus caprichos as maiores guerras sejam travadas – e as mais resistentes armaduras sejam forjadas. Como se eu não soubesse que cedo ou tarde tal fato não ocorreria. E ela era realmente bela... Pude acreditar na existência do chamado “poder do amor” ao ver seus olhos, que levaram a perdição a meu irmão.

E a todas as minhas terras.

Nunca fui tola o suficiente para achar que tudo ocorrera apenas por Helena. Não, neste mundo de homens e política não somos mais do que objetos decorativos e muitas vezes até moeda de pagamento ou troca. Havia muito mais em jogo do que sua beleza, aquele fora apenas o catalisador de algo que já estava para ocorrer há tempos.

E eu não a culpava por voltar para seu antigo marido. Com meu irmão morto, não haveria nenhuma outra opção para ela a não ser aquele destino que me esperava: ser espólio, ser escrava, ser cativa.

Destino... Clamei por seu nome novamente, alimentada por minhas vãs esperanças.

Atraí sua atenção, era eu a mortal que atraiu a atenção do próprio Sol. Amou-me... Assim como a tantas outras amantes suas. Presenteou-me com a clarividência para tentar levar-me à sua cama. E quão idiota fui... Quanta petulância a de uma mortal que recusa a cama de um deus! Criança tola, como sempre fui... Só que sempre soube que era um deus. Que estava acima de mim, que após tornar-me sua amante por uma noite, abandonaria-me para sempre enquanto iria iluminar qualquer outra garota. Pelas intrigas que ouvi no quarto das mulheres, diz-se até mesmo que foi amante de minha mãe. Tive medo. Tive medo de ser apenas uma garotinha fascinada por seu brilho, de ser apenas mais uma mortal nos jogos dos deuses!

E selei meu próprio destino, aquele que não desejava.

Sou apenas um jogo em suas mãos? O peso de sua vingança é tornar-me um passatempo para os Maiores?

Pois para os olhos de todos, era eu apenas uma menina estúpida. Menina estúpida atormentada pelo futuro, pelo destino selado, mas sob a pena da dúvida. De ser taxada de louca ou idiota. De ver Tróia em chamas, de ver meus irmãos mortos, de ver tudo aquilo que vinha e ninguém acreditar. Ninguém nunca acreditar. De ser apenas estúpida, de ouvir meu pai rir de mim e me chamar de criança tola. Como aquela risada irônica que me depreciava me feria!
Por mais que eu tentasse correr e gritar, clamar pela salvação daquilo que já estava fadado à destruição!

Afinal, era eu só uma menina em um mundo de adultos, que nunca dariam ouvidos a uma... mulher. Ainda mais, a mulher que rejeitou um deus – como se soubessem disso! Você deve estar rindo de mim agora. Se é que não deixou de rir em nenhum desses dias em todos esses anos.

Sinto mãos masculinas fortes me envolverem, me puxarem. Tento lutar, mas é em vão. Ainda sou uma princesa, afinal. E ainda sou Tróia. Violar-me significa violar Tróia, humilhar e submeter os antigos inimigos.

- Apolo... – Sinto meus lábios dizerem, enquanto uma lágrima escorrega por meu rosto.
Apego-me à ilusão de que virá por mim. De que o próprio sol intercederá por minha vida, me salvará e me deixará em segurança. Porém, sei que sou tola. Que não virá, afinal meu destino jaz longe daqui, tenho o privilégio de saber como irei deixar esse mundo.

Aliás... Para você, morador do Olimpo, senhor da luz solar, quanto vale a vida de uma mísera mortal?

***

Só faz sentido se for postado hoje.

E até sexta, espero :-)

sexta-feira, outubro 21, 2005

Terras Secretas - Capítulo 2: Problemas Com Máquinas

O calor estava infernal naquela tarde, mas pelo menos o ventilador ainda funcionava. Era a única coisa responsável por quebrar o silêncio naquele quarto, já que o aparelho de som tinha quebrado uma semana antes. Bom, pelo menos o técnico tinha agendado uma visita naquela tarde, então nos próximos dias isso seria um problema a menos.

Não que o adolescente naquele quarto estivesse se importando muito com isso naquele momento. Seus olhos brilhavam diante da tela do computador e seus dedos percorriam o teclado rapidamente e ansiosamente, esperando pela resposta de uma pergunta feita em um chat pouco antes.

“Não acredito! Essa gatinha linda caiu na minha conversa! Ela é tão lindinha, tão bonitinha! Vou me dar bem, issaê!!!! Agora é só marcar que dia vamos nos encontrar e... Ué, por que esse mouse não está respondendo? Funciona, droga, funciona, eu vou desencalhar finalmente! Funciona!”

Os vizinhos claramente puderam ouvir um grito ecoar por um raio de cinco quilômetros daquela casa. Não tinha conseguido entender como fizera aquilo, mas o mouse emperrara. Ao tentar fazê-lo funcionar, puxou com força o fio e desconectou o computador. Ao tentar reconectar o mouse, não entendeu muito bem o que fez, mas acabou derrubando a torre no chão e quebrando alguns componentes internos que definitivamente não sabia quais eram.

- Tão novinho, com cheirinho de coisa nova ainda! Eu não acredito, sou um idiota mesmo! Eu ia finalmente desencalhar, aquela menininha linda aceitou sair comigo mas nãããão, Murphy é apaixonado por mim, só pode ser isso! O que falta mais me acontecer hoje?

Antes que pudesse se dar conta que tinha dito a frase proibida, a campainha tocou. Antes de sair do quarto, tropeçou no ventilador, fazendo com que este se espatifasse no chão. “Bom, pelo menos o computador tá na garantia ainda...”. Atravessou a sala rapidamente e ao abrir a porta, deu de cara com um sujeito de terno preto, óculos escuros e tamanho guarda-roupa:

- Ué, agora a assistência técnica usa terno?

- O senhor é Igor Moreira?

- Eu mesmo... O aparelho de som está aqui dentro, é só...

Antes que Igor pudesse se virar, sentiu que uma forte mão segurava seu pulso. O segurança, sem alterar o tom monótono de voz ou a expressão facial inexpressiva, disse.

- Você nos acompanhará agora. É peça importante para nosso projeto.

Antes que pudesse reagir, o garoto foi jogado no banco de trás de uma BMW preta, que não demorou a dar partida. Teria chegado rápido ao seu destino caso não tivesse furado o pneu duas vezes, mas em pouco menos de uma hora atravessou os portões da fábrica de cosméticos do Conglomerado Reverie, talvez a mais importante fonte de emprego e renda da cidade. Todos os dias, às cinco da tarde, fumaça cor-de-rosa cobria os céus da cidade. Era do produto mais conhecido e importante da fábrica – os xampus de morango que além de deixarem os cabelos com novo brilho, eram comestíveis. Um pesquisador dissera que o uso do xampu e a incidência de casos de câncer estavam relacionados, mas curiosamente algumas semanas depois apareceu morto em um trágico caso de crime passional. Apenas coincidência, claro.

Igor foi levado pelos seguranças pelos corredores até um elevador – onde inexplicavelmente houve um pico de luz. Pouco depois, com os problemas já resolvidos, o garoto percebeu que estava em uma sala enorme, onde alguns pesquisadores de jalecos brancos carregando pranchetas iam de um lado para o outro entre os vários computadores de última geração, que nem em seus sonhos mais delirantes havia visto. Tudo ia em paz, exceto por uma lâmpada que explodiu e provocou alguns xingamentos de um dos pesquisadores, pouco adiante.

Esperando por ele, estava uma bela mulher de cerca de trinta anos, cabelos castanhos presos em um coque e óculos de armações grossas, com um sorriso no rosto.

- Seja bem-vindo, Igor.

- Que diabos de lugar é esse? Olha, se não podiam consertar o som, caso se sentiram ofendidos em serem chamados vinte e cinco vezes em um mês, não é culpa minha! Pagamos os serviços em dia, além disso...

- Silêncio. Não somos da assistência técnica do aparelho de som.

- Então quem vocês são para me tirarem de casa assim? Olha, meu computador quebrou, você não tem noção do esporro que eu vou tomar quando chegar em casa!

A cientista suspirou profundamente. Aquele dia estava sendo complicado, ou pediria um aumento para seus chefes ou adiantaria os planos de passar as férias em alguma ilhazinha simpática no mar Mediterrâneo.

- Você está aqui porque foi selecionado para um projeto muito importante do Conglomerado Reverie. Você foi convidado para os testes de nosso software de interação, afinal estamos testando a evolução natural dos MMORPG que revolucionará o mercado e nos colocará algumas décadas a frente da concorrência. É um projeto extremamente selecionado, portanto considere-se privilegiado por participar dele!

- Espere aí um pouco... MMORPG e software querem dizer que se trata de um jogo, certo?

- Certo.

- Um jogo on-line, talvez?

- Hum, pode-se dizer que sim.

- Olha, moça, então temos um problema... As máquinas não parecem gostar muito de mim, sempre tivemos problemas. Eu quebro tudo muito fácil e as coisas estragam só de eu olhar para elas! Sabe quantos liquidificadores precisamos comprar só esse ano? E lâmpadas? E fiações elétricas? Eu estava no meu terceiro computador!!! Olha, eu entendo sua situação, mas meu pai já está endividado demais para termos de cobrir prejuízos dos outros, ainda mais de uma empresa grande!

- Mas é justamente por isso que você foi convidado, Igor. Se o nosso sistema for suficientemente resistente a pessoas como você, significa que poderemos ampliar nossos mercados. Não precisa ter medo quanto a seus pais também, nesse momento eles devem estar recebendo um contrato explicando toda a situação e com as recompensas financeiras que receberão. – Disse a cientista com um sorriso no rosto, enquanto pensava no modelo de biquíni que compraria para aproveitar suas merecidas férias.


Em um escritório, um homem calmamente digitava um relatório. Coisa simples, dentro de alguns poucos minutos terminaria e poderia ir à sala do cafezinho. Estava especialmente cansado naquele dia, mas pelo menos já estava quase chegando o fim de semana. Ao terminar um dos últimos parágrafos, levantou os olhos do monitor e espreguiçou-se, apenas para perceber um homem, obviamente um segurança vestindo terno e óculos escuros, adentrar sua sala sem ao menos ter sido anunciado. Antes de pensar em passar uma descompostura em uma das recepcionistas, ele começou a falar.

- O senhor é Nelson Moreira?

- Sim, mas o senhor não foi anunciado e não deve entrar.

- Trago notícias de seu filho. – O tom de voz não se alterou e o homem, com movimentos duros como os de um robô, colocou um envelope sobre a mesa. – Ele foi detido sob a acusação de ter desfeito a rede de segurança de uma das mais importantes instituições bancárias do país. Está detido por tempo indeterminado para averiguação.Obrigado pela atenção. Tenha um bom dia.

O segurança saiu da sala da mesma maneira furtiva como entrou, deixando Nelson atônito. Seu filho... Preso? Por ter derrubado um sistema de segurança bancário? Onde tinha errado na educação dele, tinha o ensinado a fazer as coisas certas, por que isso agora?

Bom, pelo menos por alguns dias nenhum aparelho eletrônico estragaria em sua casa...


Igor estava sentado em uma cadeira confortável, imerso em pensamentos. Tudo aquilo era muito louco, isso sim! Convidado para testar um jogo de videogame momentos após ter quebrado seu computador! O computador, tinha se esquecido dele! Pois e, tinha perdido a oportunidade de sair com aquela gatinha. E de desencalhar.

Suspirou profundamente e espreguiçou-se. Ao se espreguiçar, uma de suas mãos se encontrou com o botão de um ar-condicionado pouco acima de sua cabeça, fazendo com que a máquina começasse a fazer barulhos estranhos e, poucos minutos depois, exalar um característico cheiro de queimado. Era só os donos da fábrica realmente não cobrarem que estava tudo muito bom, isso sim!

Dois seguranças apareceram pela porta e, sem muitas palavras, acompanharam-no até a saída da sala. “Sujou!”, não pôde deixar de pensar. Era só começar a torcer para não acontecer nada de errado com ele e nem com nenhuma máquina, porque algo lhe dizia que o pior ainda estava por vir...

***
Nomes aleatórios, reiterando.
Mais minissérie sexta que vem, mais contos na terça-feira ;-)

Então... Até terça ;-)

terça-feira, outubro 18, 2005

Iniciação

Estava ansioso, afinal aquele seria um dia decisivo em minha vida! Seria quando eu finalmente, após anos de estudos, privações e preparação, finalmente poderia me tornar um xamã. Todo o meu corpo tremia, todo o meu ser estava ansioso e receoso por aquilo que viria. Não sabia o que esperar, não sabia o que poderia acontecer.

Vesti-me apenas com a túnica mais simples e, enquanto as mulheres de meu povo cantavam alegres canções, fui levado até os anciões. Ajoelhei-me, submetendo à vontade daqueles que cuidavam da comunidade. Ouvi com atenção as palavras que disseram... Ou melhor, nada pude entender. Concordei instintivamente com o que diziam, o nervosismo e ansiedade não me deixavam estar totalmente lúcido.

O cerimonial efetivamente começou quando postei-me diante do antigo xamã, meu mestre, que me treinara para aquela função. Naquela noite, dizia ele, deveria eu abrir o portão que conecta nosso mundo aos espíritos ancestrais e deixá-los falarem a meu coração, deveria eu trazer a mensagem para a maior das perguntas quando retornasse.

Estendeu-me então uma cuia com um líquido vermelho brilhante, um combinado de plantas que “abriria meus ouvidos para os sons dos Superiores”. O gosto era amargo, porém suportável. O canto e dança continuavam enquanto eu, no centro da comunidade, tonto devido ao líquido que havia bebido, recebia bênçãos e conselhos.

Fui escoltado por todo o meu povo até o cume de uma colina, onde deveria ficar sentado meditando até ouvir o som dos Superiores. Apenas se eu fosse digno eles apareceriam, apenas se eu pudesse ser o novo xamã ouviria o que teriam a me dizer. Tive medo. De não poder vê-los, dos animais selvagens, de frustrar todos aqueles que esperavam por mim e principalmente a mim mesmo.

A noite passava devagar e eu observava as estrelas no céu. Será que eu não era digno? A tensão abateu-se em meu corpo, já sob o efeito da tontura constante provocada pelo chá. Será que, no dia seguinte, pela manhã, quando me buscassem, tudo estaria acabado e eu seria apenas um perdedor, alguém que não alcançara tudo o que desejara?

Mas eu tinha estudado bastante toda a teoria sobre o céu e a terra! Ouvira as histórias sobre meus ancestrais, aprendera a respeitar tudo aquilo que vive e a buscar sabedoria e consolo Naqueles Acima de Nós. Ouvir os sons trazidos pelo vento, identificar a música dos pássaros, a voz dos animais, a vida em uma árvore ou na menor da flor. Respeitar tudo aquilo que vive e levar a lição de respeito a todo o meu povo. Orientá-los nas crises, assisti-los nas necessidades, auxiliá-los nas dificuldades, aconselhá-los nas dúvidas. Era essa a função do xamã, afinal, seria essa minha função. A comunidade precisaria de mim, assim como eu precisaria dela para poder ser aquilo que nasci para ser.

As estrelas desapareciam e o céu vestia-se de rosa para esperar o sol quando comecei a ouvir sons estranhos. Era como se meu corpo tivesse virado pedra e, ao meu lado, um animal que eu nunca tinha visto estava sentado, como se quisesse minha companhia. Ao olhar para frente, vi uma estranha e colorida águia, junto com uma criatura que parecia ter forma humana, dotada de grandes e macias asas como a do mais belo pássaro e corpo parecido com o dos felinos, cheios de manchas em sua pelagem delicada. A criatura sorriu-me. Seria aquela visão um fruto dos narcóticos que tomara?

Os olhos me olhavam com curiosidade. Eram tão profundos e ao mesmo tempo puros, eram como os de uma criança que encara o mundo pela primeira vez. Tentei formular a pergunta, a maior das perguntas, aquela que eu deveria fazer para poder cumprir meu destino. Apenas vacilava sem conseguir me expressar, mas a criatura olhou e me disse, com a voz terna como a de uma mãe:

- A resposta sempre esteve em seu coração.

Após essas palavras, juntamente com a águia saiu voando. O pequeno animal ao seu lado também desaparecera, porém entendi o que queria dizer. A resposta estava dada e me satisfazia.

Junto com o sol, que se espalhava pelas planícies, naquela manhã um xamã tinha nascido.

***

AVISOS:
1) A continuação do texto de semana passada ocorrerá na SEXTA-FEIRA. Por quê? Porque como será uma série, não sei quantas semanas ficariam "travadas" até sua conclusão. Então, para continuar com o andamento do blog como o planejado, às TERÇAS-FEIRAS teremos os contos padrão e às sextas nossa minissérie ultralegal e fantástica =D
2) Perdões pelo atraso
3) Até a sexta-feira ;-)
4) Espero comentários

terça-feira, outubro 11, 2005

Dia Ruim

- Mãe, cheguei!

Depois de um longo dia de aula, Marcelo não estava com muita paciência para esperar na sala até o almoço ficar pronto. Foi para o quarto rapidamente e atirou a mochila velha e surrada em um canto. Seu humor não era dos melhores, afinal tinha perdido três partidas de truco seguidas para aquele ladrão do Juninho em um dia só! Além do que, descobrira que tinha mais uma nota baixa de matemática para a coleção. Certamente tomaria uma senhora bronca quando o boletim chegasse.

Lembrou-se, porém, de que havia algo muito valioso em sua mochila. Puxou-a novamente e lá de dentro tirou um exemplar da Playboy com a Juliana Paes na capa. Ah... Nenhum amassadinho. Melhor assim. A tarde certamente seria divertida, a menos que a tonta da irmã inventasse de se trancar no banheiro para fazer escova no cabelo na sua frente. Colocou seu tesouro debaixo do travesseiro e se sentou na cama enquanto esperava ser chamado para o almoço.

Olhou para os tênis sujos e esburacados antes de suspirar resignado. Não era só por ter perdido no truco ou tirado nota baixa que estava triste, mas por ter visto Fernanda, aquela gracinha da oitava série, aos beijos com um mané qualquer do terceiro ano. O que aquele cara tinha melhor do que ele? Seria o fato de passar o resto da tarde na academia com mais um monte de idiotas que adoravam admirar seus músculos? Ou por já ter uma bela moto e freqüentar os melhores clubes da cidade? Talvez ser o artilheiro do time de futebol da escola e por conseqüência um dos alunos mais populares também ajudasse. Ou ainda – argh, como era difícil admitir isso – ser bonitão.

Olhou-se no espelho e tentou contrair o bíceps do braço direito, sem sucesso. Era magricelo, quase desaparecia dentro da blusa de uniforme e do bermudão. Era um jogador de futebol ótimo para a reserva, além de tirar notas baixas, ser pobre e não ter carro nenhum. Bonito? Até poderia ser simpático caso tivesse menos espinhas. É, realmente, o outro cara era melhor do que ele. Sem dúvidas.

A divagação terminou quando ouviu pancadas na porta do quarto. “O que eu fiz dessa vez?”, pensou rapidamente antes que a porta viesse abaixo e dois seguranças meio parecidos com guarda-roupas vestindo ternos entrarem e, sem perguntarem ou fazerem qualquer outro movimento, o suspendessem pelos ombros e levassem de casa, diante dos olhares atônitos de sua mãe e irmã.

- Que foi que eu fiz?

A resposta foi ser atirado no banco de trás de uma BMW preta, que deu a partida assim que cada um dos seguranças guarda-roupas se posicionou a seu lado. O que estava acontecendo, depois de perder no truco, sangrar o boletim e tomar um fora ainda estava sendo seqüestrado pela MIB? Ah não, já tinha ido longe demais o sonho, já estava na hora de acordar! E não podia admitir que estava apavorado com a situação!

- Alguém pode responder o que foi que eu fiz?

Nenhuma resposta.

- Pô, tio, diz pra mim o que foi que eu fiz! – Disse ele para um dos seguranças.

Um safanão foi o suficiente para mantê-lo em silêncio pelo resto do caminho. Agora sim Marcelo achou que poderia começar a ficar apavorado...

Percebeu que o carro tinha parado e, pelo que pôde observar, aquela era uma fábrica de cosméticos que havia na cidade. O motorista falou qualquer coisa com a pessoa no guichê de checagem e o carro continuou o percurso. Marcelo foi levado de uma maneira nada elegante para fora pelos dois seguranças e guiado por alguns corredores até um elevador.

A descida parecia infinita, mas quando o elevador finalmente parou, Marcelo pôde ter certeza de que ficar apavorado era uma boa idéia. Era uma sala gigante, com algumas pessoas andando de jaleco com pranchetas nas mãos entre alguns processadores e computadores que ele só vira igual nos filmes mais viajantes da TV. Logo na entrada da sala, uma mulher aparentando cerca de trinta anos, cabelos castanhos presos em um coque, óculos de armação grossa e um jaleco em cima de um vestido que realçava seu belo corpo:

- Bem-vindo, Marcelo.

- Quem é você, que lugar é esse e o que querem de mim?

- Não há razão para pressa. Considere-se um escolhido para o mais maravilhoso teste de todos.

- Escolhido? Teste? – Estava definitivamente e irremediavelmente apavorado.

- Somos do Conglomerado Reverie. O braço de cosméticos é apenas uma pequena fatia de todo o nosso poder, influência e atuação. Somos grandes investidores de tecnologia e, após anos de pesquisa, desenvolvimento e evolução da tecnologia, chegamos a um ponto inacreditável da produção de softwares, onde seremos capazes de recriar uma cidade inteiramente holográfica e fazer com que pessoas interajam por meio de realidade virtual com tal cenário. É a evolução natural de qualquer jogo massivo de multijogadores e, com nossa tecnologia três décadas adiantada do mercado, poderemos criar além de uma ilha de diversão onde milionários poderão escolher a programação de seu próprio jogo, estrangular a concorrência e compor um grande monopólio!

- Quê? – O garoto tinha a expressão clássica de quem não tinha entendido nada da conversa.

- Você foi convidado para jogar uma partida de videogame, resumindo.

- Mas eu não gosto de videogame, é coisa de nerd...

A pesquisadora deu um longo suspiro antes de prosseguir:

- Não é um convite que cabe a você recusar. Logo você e seus companheiros serão levados para a ilha de nossa base para poderem jogar.

- Companheiros?

- Sim, os outros convidados, dentro de logo eles vão chegar.

- Mas por que eu? – Marcelo disse, cada vez mais próximo do pânico.

- Porque, segundo a análise de nossos computadores a respeito de seus dados, você é um idiota completo. E como precisamos pesquisar todo tipo de público, sua ficha combinava muito bem para a amostragem.

- Ah, obrigado... – Era melhor entender aquilo como elogio. – Mas o que dirá para meus pais?

- Não se preocupe. Logo um funcionário de nossa companhia os procurará e fechará com eles um contrato, explicando a situação e evitando maiores dores de cabeça.


A campainha tocou na casa de dona Marilda, ainda apavorada com a invasão ocorrida pouco antes. Ao abrir a porta, deu de cara com outro estranho engravatado de óculos escuros, como aqueles que tinham levado o seu filho. Sem perguntar coisa alguma, ele disse:

- A senhora é a mãe de Marcelo dos Santos?

- Sim, eu mesma.

- Seu filho foi detido pela Agencia de Inteligência para responder a algumas perguntas. Segundo consta em nossos relatórios, ele está envolvido com facilitação de rotas internacionais de tráfico de drogas e deverá ficar detido até que tudo se resolva. Espero sua compreensão. Tenha um bom dia.

O engravatado entregou para dona Marilda um envelope com os dados sobre o caso e, enquanto ela olhava desesperada para o que tinha em mãos, saiu sem deixar vestígios.


Marcelo estava sentado, sob vigília dos seguranças, em algumas cadeiras no grande laboratório branco. Estava começando a cansar a vista toda aquela falta de cor e ainda não tinha entendido o que estava acontecendo. Então era jogar um jogo bobo e tudo estaria acabado? Então que viesse logo, daí tudo estaria terminado depressa e poderia voltar para a Juliana Paes.

Finalmente, depois que já tinha a certeza de que tinham esquecido-o ali, a mesma pesquisadora recebeu-o e pediu que a acompanhasse.

- Mas que história é essa de jogo?

- É muito simples, meu caro. Tenho de ver se você e seus companheiros sobreviverão a situações extremas. Quando todos estiverem juntos tudo será explicado com maiores detalhes, mas a maior regra é essa: você deve sobreviver.

O garoto engoliu em seco. A palavra “sobreviver” soava de uma maneira apavorante a ele naquele momento... E ele começou a sentir que o pânico começava a se apossar de seu corpo.

Definitivamente, aquele era um dia ruim.

***

OBS: nomes aleatórios. Nenhum personagem baseado em ninguém. =P

Essa é uma tentativa de fazer uma seriezinha sem muito compromisso com a seriedade. Quero ver se treino um pouco o humor negro e coloco situações mais próximas da bizarrice. Claro, com um mínimo de coerência lógico-textual, mas descompromissada mesmo. Quero ver se me divirto escrevendo e passo a sensação para vocês. Portanto, COMENTEM!

E até terça que vem! ^^

segunda-feira, outubro 03, 2005

Bom Dia!

Acordou vagarosamente, abrindo os olhos e espreguiçando-se levemente, apenas para lembrar do sonho que tivera: nunca imaginara que banalidades como ir a um clube seriam tão desejadas em algum dia! E que sonho bom fora aquele, ver as garotas de biquíni, encontrar seus amigos, porém principalmente... nadar em uma piscina!

Com cuidado saiu de sua "cama", na verdade apenas uma cápsula no interior de uma parede, tinha vezes em que realmente acreditava estar dormindo em um gavetão do IML... Pelo menos não sofria de claustrofobia, o que poderia fazer com que as coisas se tornassem bem piores... Ou melhor, caso fosse claustrofóbico, não haveria lugar para ele ali! Afinal, há quantos dias estava confinado ali? Estava na véspera de completar três meses, lembrou-se...

Desceu as escadas que separavam seu "quarto" do corredor central - afinal seus companheiros de jornada ainda deviam estar dormindo naquele momento - e desceu novamente as escadas que se encontravam em um vão no meio do corredor até chegar à seção principal de sua "residência" atual. Pelo menos podia pôr os pés no chão e andar, aquele era um luxo raro para quem passava até mesmo dias flutuando... E como a piscina fazia falta, era muito melhor nadar na água do que no ar, pelo menos para ele!

Dirigindo-se para o banheiro, lembrou-se de detestar os tais reality shows que vez ou outra apareciam na TV quando era criança. Que idiotice viver em um confinamento observado por centenas de câmeras e milhares de espectadores, ter de conviver apenas com poucas pessoas por meses e dividir desde comida a tarefas domésticas! Lembrava-se também daqueles jogos de sobrevivência, em que um grupo era mandado a fazer tarefas extenuantes em destinos exóticos! Quanta ironia, pensou enquanto fazia sua higiene matinal com o mínimo cuidado para não desperdiçar nem uma gota de água, estava vivendo em um reality show gigante, era monitorado o tempo todo, vivia em confinamento com outros três camaradas que conhecera no dia de embarcar, tinha de racionar toda a comida e dividir tarefas domésticas, fazia tarefas extenuantes diárias... E o que é pior, não era por um prêmio milionário! Vidas dependiam dele, inclusive sua própria, não podia se dar ao luxo de ser descuidado e provocar um acidente - que resultaria consequências muito mais graves do que uma "eliminação"...

Ao tirar os suprimentos de alimentação do armário e preparar seu café da manhã - a maldita papinha de leite em pó com aveia! - foi tomado por uma onda de nojo antes de respirar fundo e mandar tudo pra dentro: que saudades de comer nem que fosse a mais banal comida caseira, um purê que fosse feito com batatas frescas, carne assada e principalmente... Uma bela salada! Nunca na vida imaginara sentir saudades de comer um bom prato de alface, tomate e cenoura! Enquanto engolia seu café insosso, imaginava-se comendo o melhor jantar preparado pelo melhor cozinheiro, tinha saudades até mesmo daquilo que nunca gostara de comer!

Terminando o café, foi até a sala de operação de máquinas, sentando-se calmamente em seu lugar e inicializando os sistemas de seu computador pessoal. As outras máquinas eram independentes apesar de subordinadas ao sistema central, o que facilitaria controlar uma pane, porexemplo. Um coração funciona por algum tempo mesmo depois que o cérebro pára, os órgãos vitais da operação precisavam funcionar mesmo sem o cérebro caso algum grande problema ocorresse mesmo que apenas pelo tempo necessário do problema ser estabilizado e sanado - ou de fazerem uma retirada de emergência, o que acontecesse primeiro. Seu computador, a máquina central controladora de todos os sistemas, operava em stand-by durante seus períodos de folga.

Na verdade, não era nem mesmo o "cabeça" da operação! Era apenas um técnico de informática, amara os computadores desde a infância... Destacara-se nos estudos de computadores e sistemas, fizera uma excelente universidade com uma bolsa de estudos melhor ainda, fora treinado para estar entre os melhores... Naquele momento, porém, sabia que precisava ainda dar muitos passos se buscava uma pretensa "perfeição"... Mas o que importava? Era bem jovem ainda, seu tutor achou que aquela era uma excelente oportunidade de mostrar suas capacidades além de abrir muitas portas em seu futuro...

E realmente fora o maior desafio que já encontrara... Chamaram-no para fazer parte de uma equipe de um dos projetos mais ambiciosos produzidos pela Humanidade... Trabalhara no desenvolvimento do software de interligação entre os diversos terminais od projeto, entre os diversos setores de toda a operação. E ele, criador, talvez fosse a pessoa mais indicada para comandar o programa, diretamente em seu lugar de aplicação. Obviamente era perigoso demais deixar tudo nas mãos de uma inteligência artificial - se a própria inteligência humana já era falha, não podiam confiar tudo a uma derivativa dessa... Podia até acontecer do poder lhe subir à cabeça, não era seguro...

Mas agora olhando para a tela em sua frente - e ignorando por alguns segundos aquelas ao seu redor - e perdendo-se em um mar de códigos apenas para averiguar que tudo se encaminhava como o necessário, os dedos batendo preguiçosos no teclado, tinha dúvidas se realmente desejava aquilo... Não fazia nem vinte minutos que se sentara e resolvera dar uma volta pela sala para espantar um pouco do tédio, perguntando-se o que fazia ali.

Ao olhar por uma escotilha, lembrou-se imediatamente. Fazia parte da primeira missão humana tripulada para Marte, estava em uma base orbital de apoio responsável por auxiliar e coordenar as equipes que trabalhavam em terra, toda a humanidade clamava pelo sucesso daquela missão! Podia lembrar-se dele quando criança, de brincar de astronauta, de desejar cruzar galáxias, ao mesmo tempo que via as crianças que tinham aquela equipe como ídolos, adultos que voltavam a ter as expectativas da juventude ao ver os telejornais ou procurar notícias na internet sobre o andamento da missão...

E, além de tudo isso... Não havia visão mais bela para se começar o dia do que o Planeta Vermelho ali tão próximo, ao perfeito alcance de seu olhar.

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Das antigas.
Achei remexendo meus arquivos.
Dá para ver que dei uma mudada boa, não? ^^

E até a próxima terça! ;-)