segunda-feira, abril 23, 2007

Anjo da Tempestade

Desde os primeiros dias de sua infância, Lilly fora ensinada a crer no Anjo. Eram lendas antigas, contadas aos pés das fogueiras, diziam que o Anjo viria e os redimiria de todos os erros e pecados. Que, para que ele agisse na vida de alguém, bastava acreditar que ele pudesse surgir e um milagre poderia acontecer.

Desde que aprendera a fazer preces, todas as noites ajoelhava-se aos pés de sua cama, desejando a visão do ser que a redimiria de toda a escuridão. Dirigia-lhe palavras doces, desejava encontrá-lo, desejava conhecer o paraíso que ele proporcionaria àqueles que tivessem fé.

Todas as noites, obedecia ao mesmo ritual. Dirigia palavras ao Anjo para que a abençoasse, assim como a todo o seu povo. Enquanto criança, tais preces eram até mesmo esperadas mas, com o passar dos anos, era com olhares de recriminação e mesmo com risos de escárnio que era recebida ao contar sobre sua fé. Aquela era apenas uma lenda, deveria crescer e deixar de acreditar em tais histórias infantis. Não deveria orar por um anjo redentor, afinal quem viria a seu socorro?

Não que esperasse que o Anjo solucionaria todos os seus problemas, mas sabia que ele lhe daria forças para lutar. E, mesmo durante a adolescência, ouvindo protestos de pais e conhecidos, continuava a ajoelhar-se por todas as noites, aos pés de sua cama, repetindo a mesma doce oração.

Continuava a crescer. Ao olhar uma rosa amarela, imaginou que seu Anjo estivesse nela, mas tropeçou e acabou por se ferir nos espinheiros. As lágrimas de dor não foram contidas e um pensamento era inevitável: “por que ele não pôde me proteger?”.

Ainda assim continuou com suas orações diárias, as palavras doces maculadas por um certo amargor. Ouvia risadas, afinal, anjos não pertenciam ao mundo material, por que perder seu tempo com divagações?

Imaginou tê-lo visto no meio de um lago. Ao tentar alcançá-lo, a força da correnteza a afastou e, se não fosse por alguns passantes muito solícitos, teria sucumbido. Então ele não viria por ela quando precisasse?

Continuou as orações, as palavras tornaram-se ásperas. Não tinha a intenção de desistir, mas seu Anjo não seria apenas uma história infantil, como sempre lhe disseram? Começava a acreditar em tal hipótese. Sua fé começava a se abalar.

E quantas pessoas não viam que menosprezavam a figura do Anjo? Usavam-no para justificar seu próprio egoísmo, sua própria inépcia. As pessoas o invocavam sem nem se importar com o que representava, apenas para procurar uma figura para usar de justificativa para sua futilidade. Enojava-se por essas pessoas. Como podiam menosprezar sua fé, o que o Anjo para ela representava?

Encontrou-se também com pessoas que o menosprezavam, quase blasfemavam. Essa é apenas uma idiotice para crédulos, era o que diziam. Não conseguia conviver com essas pessoas, discordava veementemente delas! Horrorizava-se com suas palavras, com seu descaso!

Em uma noite tempestuosa, Lilly ajoelhou-se para seu ritual diário. O coração tremia assustado pelos fortes trovões e relâmpagos da tempestade, mas não deixou de pronunciar nenhuma de suas palavras habituais. Deitou-se um tanto quanto assustada, mas acabou por adormecer.

Foi o mais real de seus sonhos. Estava em um campo florido e uma figura a observada, sorrindo o sorriso mais encantador que jamais vira. Ele sussurrou seu nome, enquanto aproximava-se com um buquê de rosas apanhado na hora:

- Lilly, Lilly, minha pequena Lilly...

- Quem é você? – Tinha uma imensa certeza de quem era, mas a pergunta foi inevitável.

- Aquele para quem fez suas preces por todos esses anos. Estarei sempre aqui com você, Lilly, a protegê-la de todo o mal, para redimi-la de seus erros quando for a hora certa.

A garota não resistiu ao impulso de abraça-lo – e como eram confortáveis seus braços! Como sentia-se reconfortada, como era aquele o lugar onde sempre desejou estar! Por toda a noite, ele a tomou pela mão e passearam juntos pelos campos floridos sem fim, entre sorrisos e risadas.

Foi com uma expressão desapontada que acordou, que percebeu estar na sua cama, em seu quarto. Apenas um sonho? Apenas o sonho com o maior de seus desejos?

Ao apoiar-se para levantar de sua cama, percebeu tocar pétalas de rosas vermelhas. Na verdade, toda a sua cama e quarto estavam repletos de pétalas, assim como o sol brilhava do lado de fora.

Não pôde deixar de rir. Então, não precisava ter medo, sua fé era real! Seria redimida de seus erros e levada ao paraíso pelo Anjo – mas aquele não era seu paraíso particular, onde passara toda a noite?

Tinha um enorme sorriso nos lábios, que ali ficaria perpetuamente. E ainda sentia em seu corpo o calor do Anjo e a certeza que ele sempre a acompanharia.

***

Brega? eu sei.
Simbolismo paulocoelhiano? eu sei.
Mas quem se importa?

quarta-feira, abril 18, 2007

Prelúdio de Sombras

Era uma daquelas noites em que apenas as estrelas salpicavam o céu com seu brilho. A pequena vila acalmava-se com o fim das atividades diárias, fossem elas o trabalho de artesãos e camponeses ou mesmo as funções exercidas pelos sacerdotes no templo. Uma tênue fumaça saía de algumas das chaminés relevando que a última refeição do dia estava sendo preparada e o brilho de alguns lampiões podia ser visto através das janelas, revelando habitantes que ainda se mantinham despertos.

Apesar do momento de descanso diário se aproximar, havia uma agitação na praça central da cidade. Em torno de uma fogueira, algumas crianças olhavam para o homem de idade avançada que olhava para elas fixamente, enquanto andava com passos exagerados e ameaçadores para a direção onde estavam sentadas:

- Podem ver as luzes da fogueira? As chamas que se lançam aos céus, as sombras que dançam pelo chão... Pois é. A luz afasta as sombras, as espanta, porém se não há luz, a tendência delas é tomar tudo aquilo que tocam...

Algumas crianças olhavam assustadas para as sombras assustadoras que se formavam no chão, como se dançassem sobre elas, como se fossem engoli-las. Apenas uma delas as olhava com desdém, como se nada fosse capaz de apavorá-lo ou fazer um mínimo arranhão em sua auto-estima.

- Por que vocês têm medo delas? Elas não podem fazer nada contra nós, são apenas imagens!

O ancião riu da petulância do garoto que se levantava com um sorriso desafiador após dizer a frase.

- Mas as Trevas se aproximam, pequeno Gareth, e você precisará de toda a força que guarda dentro de si para poder sobreviver.

As crianças se entreolhavam apavoradas, enquanto Gareth sussurrava algo como “não tenho medo”, sem perder o sorriso de uma superioridade auto-imposta. O ancião também sorria, admirado por ver como aquele menino, mesmo com dez anos, já tinha uma personalidade tão desafiadora. Não podia esperar menos do Primogênito dos Olhos do Céu, muito menos por ser filho de quem era. Era certo que ele realizaria grandes feitos quando fosse mais velho.

- Mas vocês não precisam ter medo. Se a luz permanecer dentro de vocês, as sombras jamais poderão entrar. Jamais se esqueçam disso.

Os olhos curiosamente de cores diferentes de uma menina começaram a lacrimejar. Estava apavorada, como sempre se apavorava em todas aquelas conversas, tinha medo dos monstros que pudessem devorá-la na escuridão. Todas as noites tinha pesadelos sobre ser abandonada por todos, ter de fugir de monstros maiores e mais fortes do que jamais seria, de desaparecer na escuridão sem fim.

- Não precisa chorar, eu vou proteger você.

Sentiu uma mão delicadamente enxugando suas lágrimas e ao olhar para frente, viu Gareth com um sorriso gentil. Aquele menino tão destemido ousava prestar atenção nela, preocupar-se com seus medos! Podia sentir-se um pouco mais confortável.

Por sua vez, um sorriso melancólico percorria o rosto do ancião. Pobres crianças, mal podiam imaginar os tempos sombrios que estavam por vir...

***

Brincando com Gareth e Aurora.
Vocês ainda ouvirão falar deles.

terça-feira, abril 10, 2007

Sobre Árvores... Mas Principalmente Sobre Estrelas

Tá, isso não é um conto. É uma reflexão.

Por que montar um blog? Por que um dia, há dois anos, tive a vontade, impulso e desejo de montar um blog?

A primeira - e talvez mais óbvia das razões - era me forçar a escrever nem que fosse um texto por semana, com uma "deadline" de toda terça-feira. Por mais que um texto ruim fosse gerado, era um texto ruim. E, na sábia lição de uma das pessoas que mais admiro, "a chave de tudo está na regularidade. Saramago escreve duas páginas por dia. Duas páginas por dia dão mais de 700 por ano, dão dois livros". E foi pela busca dessa regularidade - pelo menos de prática, apesar da qualidade vir com a reiteração, esta não é garantida no mais das vezes - resolvi fazer um conto pequeno, que coubesse no blog, por semana.

Por um ano, funcionou. A seguir, hiatos. Criativos ou mesmo de minha própria mente. Claro, meus próprios compromissos profissionais e pessoais também contribuíram. Não mexo com palavras apenas na ficção, sou uma arquiteta delas em minha profissão também. Em cada palavra, um sentido. Em cada sentido, uma consequência. Logo, a busca do melhor dos sentidos... Mas enfim, não só de pão vive o homem. E meu prazer está longe de ser apenas aquele que me é oferecido por minha profissão.

E mais do que isso: a escrita está intimamente ligada ao espírito. Se você não está em harmonia, não adianta. A vontade de escrever se esvai, a inspiração cai por terra. Escrever é principalmente um ato de paixão. Pelas palavras, pelas histórias, pelos personagens, pelas circunstâncias.

E o que é a vida de um bardo sem a paixão? O que move um bardo sem suas histórias, sem poder transcrever seu mundo para as outras pessoas? Mesmo para um bardo oprimido por uma prisão de vidro, por que não contar as histórias que enxerga através dela?

Pois foi isso que pensei ao criar esse blog. Em contar as histórias que enxergo por minha prisão de vidro. Não é um local confortável de se estar, mas não é nenhum inferno. E só consigo suportar a vida dentro dela por saber que há um mundo lá fora. Que não posso tocar, mas posso ver, sentir... E que, mais ainda, a única forma como poderei tocar esse mundo é contando histórias sobre ele.

Mas há um outro sentido em ter um blog, um sentido extra além de poder contar histórias e não me sufocar.
Contar histórias é minha maneira de estar perto de alguém. Cada letra, cada suspiro, cada gotícula de inspiração serve para aproximar... Como se fossem pequenos pedaços de meu mundo que eu deixasse demonstrar. Cada letra, cada sílaba, cada pequena palavrinha são uma maneira de conectar mundos, aproximá-los, torná-los próximos.

Então, que voltemos a contar histórias.