segunda-feira, setembro 26, 2005

Reminiscências I

Anoitecera há pouco tempo, um pouco mais cedo do que de costume por conta da chuva que começava a cair. A garota abriu sua bolsa rapidamente procurando por uma sombrinha e, ao encontrá-la, abriu-a devagar. Ainda parada, olhou para a árvore à sua frente: o vento fazia com que algumas folhas caíssem no chão, visão que provocou um sorriso em seu rosto.

Precisava pensar em algum texto para o dia seguinte, durante todo o dia tentara em vão pensar em alguma coisa. Pensara em tabuleiros de xadrez, mas não queria desenvolver a idéia. Lembrara-se de algumas idéias que poderia desenvolver, mas nenhuma lhe parecia suficientemente madura. Recordara-se dos arquivos e rascunhos inacabados, mas teve certeza de que não terminaria nenhum deles a tempo.

Antes de enfrentar a chuva que caía, olhou para trás por uma última vez. Era uma pequena construção pintada de verde e amarelo, como o nome sugeria. Tinha passado por uma reforma recentemente e estava maior do que costumava ser, mais ampla e poderia até mesmo dizer que estava confortável. Sorriu novamente.

***

O caminho da escola para casa poderia ser entediante caso não houvesse companhia, era uma longa caminhada que consumia meia hora para mais. O segundo colegial também era uma época interessante: já não havia o susto inicial do primeiro ano e nem a pressão do terceiro. Os dezesseis anos também tinham sua característica: deixavam finalmente a infância para trás e começavam a vislumbrar os primeiros contornos de um mundo adulto.

- Me diga, qual deles reviveu na última edição?

Era uma menina de longos cabelos negros presos em um rabo-de-cavalo, um pouco alta e com roupas que não revelavam muito de seu corpo que perguntava. A seu lado, um garoto um pouco mais baixo, igualmente de óculos, vestindo uma bermuda e uma blusa preta estampada com um personagem do South Park, respondia calmamente:

- Eles não fazem mais isso, agora há uma orientação da editora para que a lei do morreu está morto possa valer.

- Sei, sei... – Respondeu a menina com um tom de incredulidade na voz.

Neste momento passavam na frente dos cartazes do cinema, o que provocou a reação de uma menina igualmente alta, os cabelos aloirados soltos e que no momento não estava com os habituais óculos:

- Olhem só! Vamos assistir esse filme no sábado, falamos dele por tanto tempo e ele finalmente chegou! Argh, detesto esse atraso todo, mas estou doida para assistir! Vaaaamos?

- Hum... – O garoto olhou para a entrada da galeria que convencionou-se chamar de shopping e disse. – Posso gastar uma única ficha agora?

As duas meninas se entreolharam e, alguns instantes depois, consentiram com a cabeça.

Naquela hora, o fliperama estava cheio de crianças e adolescentes que, saídos da aula, visitavam aquele lugar para uma última confraternização antes de irem para suas casas e afazeres cotidianos. Os três jovens entraram ali rapidamente e, após comprarem algumas fichas, visitaram as máquinas de costume: um jogo de corridas para a moça loura, um jogo que imitava passos de dança para os outros dois.

As setinhas coloridas inundavam o telão e, com algum sucesso, a dupla acertava com os pés os botões correspondentes. A música coreana invadia o lugar – e alguns comentários sobre procurá-la na internet posteriormente foram proferidos enquanto as atenções estavam concentradas no jogo. Quando a música acabou e a pontuação adquirida brilhou na tela, a garota disse, em um sorriso:

- Que bom, finalmente consegui passar dela!

- Pois é. – O menino respondeu. – Agora vou tentar um nível acima, me acompanha?

Enquanto a dupla tentava passos de dança mais elaborados, a terceira acompanhante chegava, um pouco transtornada:

- DROGA! Estava na última volta mas perdi o controle do carro e não ganhei a corrida.

- Ah, na próxima você ganha!

Ela sorriu rapidamente, antes de olhar para seu celular. Era uma mensagem rápida, não demorou mais do que trinta segundos para responde-la e voltar a atenção para o jogo dos amigos à sua frente.

Após gastarem todas as fichas, saíram do fliperama e da galeria, continuando o percurso para casa. Seguindo a rua, a pequena construção pintada de verde e amarelo como o nome sugeria já se fazia visível e, ao se aproximarem dela, não foram necessárias palavras para que entrassem. Em silêncio, rapidamente estavam na seção de quadrinhos, folheando as revistas que tinham chegado no dia anterior.

- Ah, estou louco para acompanhar essa minissérie! A saga anterior foi muito boa e li muitas críticas boas a respeito da atual! Mas não sei se poderei levá-la, ou se continuo levando essa outra... A história está mediana, mas estou gostando de acompanhá-la mesmo assim!

Enquanto o garoto pensava alto, as duas meninas estavam entretidas folheando outra edição pouco adiante. Não era de procedência norte-americana como a revista nas mãos do amigo, mas vinha de um ponto um pouco mais distante do globo... Comentavam alegremente com quem achavam que a protagonista deveria terminar, ou qual deveriam ser os rumos que a aventura tomaria.

- Que pena, ainda não chegou o número seguinte de minha coleção... E a batalha está ficando tão emocionante, quero saber logo o que acontece! – A menina morena disse tristemente.

- Mas o meu chegou hoje... Ah, depois de ler eu te empresto, você aceita?

- Claro!

Após acertarem as compras, começaram a circular pela banca folheando as revistas a esmo, enquanto o amigo fazia o mesmo com os quadrinhos para decidir qual deles seria sua escolha. Olhavam para as revistas de fofocas e faziam comentários a respeito daquele artista ou daquela novela –a maioria deles sarcásticos e ácidos. Olhavam as revistas de receita e tinham fome, além de comentarem sobre este ou aquele bolo parecerem gostosos o bastante para serem feitos. Olhavam as revistas femininas – e davam risadinhas a respeito dos conselhos de cunho sexual. A dona da banca já devia estar acostumada ao vê-los ali lendo as revistas –e quase nunca comprando alguma – todos os dias, então não fazia comentários a respeito de seus visitantes de hora de almoço.

Quando finalmente o menino se deu conta que não tinha uma opinião formada e precisava pensar um pouco mais antes de se decidir a respeito de qual revista levar, rapidamente foram embora da banca. O sol iluminava a rua e, calmamente, ainda rindo e comentando as revistas e novidades, o trio continuou a seguir o caminho habitual para casa. No dia seguinte fariam o mesmo percurso, assim como no outro dia e no outro. Era um hábito que faziam questão de manter.

***

Os respingos de chuva faziam barulho ao baterem na sombrinha, mas não era uma chuva forte o suficiente para molhá-la. Suas melhores lembranças dos tempos de colégio estavam relacionadas ao caminho da volta e aos lugares visitados durante este caminho. Continuou a andar o caminho para casa.

Já fazia alguns anos desde que estivera no segundo colegial e tivera dezesseis anos, muitas coisas haviam acontecido em sua vida e na vida de seus amigos. Já não convivia com eles diariamente, já não fazia o mesmo caminho e nem parava em todos os antigos pontos. O tempo tinha passado, o que era visível inclusive na reforma e na tinta sempre nova.

Sorriu, porém. Apesar do tempo estar diferente, tinha certeza de que mesmo que os caminhos mudassem, ainda percorriam-nos juntos.

******

Dedicado à duas pessoas muito especiais. ^^
E até a próxima terça!

terça-feira, setembro 20, 2005

Herói

Não sabia mais há quanto tempo estava caminhando, tinha perdido as contas de quantos dias fazia desde que sua jornada tinha começado, assim como já não sabia mais quantos tinha matado. Homens, monstros, demônios... Criaturas que se opunham ao seu caminho e ameaçavam sua vida. Sobrevivência. Era o que contava.

Um dia tivera nos olhos o brilho de um jovem que queria mudar o mundo, mas atualmente era apenas um espadachim embrutecido pelas batalhas. Tinha visto o inferno tantas vezes que este já não lhe apavorava, pois acabara por se tornar tão ameaçador quanto aquilo que precisava enfrentar. Já não desejava mudar o mundo, queria apenas manter-se vivo.

Andava por uma estrada vazia. Precisava manter-se alerta, não sabia o que poderia surgir... Talvez fosse tal alerta constante que o fez ouvir alguns sons estranhos e, indo na direção deles, percebeu um menino de não mais que dez anos de idade cercado por lobos.

O que eram lobos diante de tudo o que ele já tivera de enfrentar até aquele dia? Eram quase tão inofensivos para ele quanto cachorrinhos... Porém, para aquele menino, eram tão apavorantes e mortais quanto o maior dos dragões.

Não era sua função salvar pessoas que não tinham condições de se auto-proteger, mas antes mesmo que pudesse pensar a respeito do que fazia, sua espada já estava fora da bainha e pedaços de lobo jaziam pelo chão enquanto o menino olhava para ele.

- Está salvo agora. – Limitou-se a dizer.

O menino nada disse. Podia perceber, todavia, o brilho indisfarçável de seus olhos. Era muito mais do que o agradecimento pela vida salva: era uma admiração incondicional. Em um mundo de guerras, não havia nada de extraordinário em ser um espadachim, mas aquele menino o olhava como se fosse sobre-humano.

Como se fosse um título que abominava mais do que tudo.

Como se fosse... Um herói.

- Senhor... Obrigado...

Aqueles olhos... Não havia gratidão mais sincera do que a presente naquele olhar. O menino levantou-se e tocou-o com a mesma reverência que tocaria em uma deidade e disse:

- Senhor, venha comigo até minha aldeia!

A frase fora dita numa alegria pueril tão contagiante que não admitiu recusa. Não era seu papel proteger pessoa alguma e nem impedir a morte de ninguém, mas gostaria de garantir que a criança chegasse bem em casa, fosse recebida por pais que deveriam esperar ansiosos por notícias do filho e seguir com sua vida.

Afinal, logo ele também teria nos olhos o brilho daqueles que querem mudar o mundo.

***

Esse é um miniconto feito especialmente para uma lista de discussões ao qual pertenço.
Não gostei muito do TAMANHO dele, achei que tudo ficou condensado demais, mas vale como experiência.
Pode ser que ganhe versão extendida. Pode ser. :-)

Até a próxima terça ;-)

terça-feira, setembro 13, 2005

Diversão

As unhas de tom escarlate arranharam de leve os finos lençóis de seda daquela cama, enquanto a dona de tão belas unhas acordava calmamente como se não houvesse um mundo do lado de fora, como se pudesse dar-se ao luxo de repousar por quantas horas fosse necessário. A noite anterior e posterior madrugada tinham exaurido muito de suas forças, mas não se lembrava da última vez que se divertira tanto. Precisava satisfazer seus próprios desejos de vez em quando, tinha o direito de tentar relaxar um pouco às vezes.

Percebeu que sua companhia ainda estava adormecida logo a seu lado, mas bastou que se sentasse na cama, enrolando displicentemente um lençol sobre o corpo para pegar suas roupas, para que ele despertasse e se levantasse rapidamente:

- Gatinha, dormiu bem? – Disse ele, ainda inebriado pelo sono.

O apelido fez com que ela sorrisse. Gatinha, sim... Naquilo que gatos tinham de mais ágil e ferino. No porte delicado e ao mesmo tempo altivo, na independência e destreza... Em ser uma verdadeira caçadora, apesar de parecer até mesmo delicada quando assim o desejasse.

- Muito bem. Tivemos uma boa noite.

O homem sorriu, aproximando-se. Sentiu que suas mãos percorriam as linhas de suas costas antes dele perguntar:

- Por que tantas cicatrizes?

- Ossos do ofício. Não é tão simples quanto pode parecer em um filme. Preciso ser ágil e sutil, mas às vezes nem toda agilidade e sutileza do mundo são suficientes para me deixar escapar de armadilhas. Já vi a morte de perto muitas vezes. Ou melhor: a morte é minha grande companheira.

- Sei muito bem que carrega a morte consigo, gatinha.

Desvencilhou-se daqueles braços rapidamente para poder se levantar, procurando suas roupas pelo chão. Sim, carregava a morte consigo, mas não deixava de ser um trabalho interessante. Apesar de saber muito bem o que era ser sua mensageira, o que era ver o horror nos olhos de suas vítimas momentos antes do fim, a pequena lágrima que alguma morte mais impactante lhe trazia, o que era ter a consciência de que certas pessoas teriam um grande futuro caso continuassem vivas, não gostaria de trocar seu trabalho por nenhuma proposta que qualquer um pudesse lhe fazer. Sua vida era aquela, não tinha a intenção de trocá-la por nenhuma outra.

- Mas você não sente por suas vítimas?

- Às vezes. – Disse ela enquanto colocava rapidamente a calcinha de cor preta.

- E se arrepende do que faz?

As pernas que se esforçavam para caber na calça de couro pararam por um instante enquanto pensava na pergunta. Arrependimento? Se fosse pensar em arrependimento, não conseguiria viver. Não apenas por suas vítimas, mas por cada escolha que teve de fazer durante sua vida toda. Se fosse procurar motivos para se arrepender, não levaria mais do que um minuto para dar um tiro na cabeça.

- Não.

- Mas é um serviço que alguém deve fazer, afinal... Deve ser motivo de orgulho estar em um posto tão alto da polícia, em um esquadrão de elite.

Não conteve uma pequena risada enquanto colocava a camiseta também preta. Sentou-se diante de um espelho e, tirando um pente de sua bolsa, começou a ajeitar os cabelos tingidos de vermelho muito lisos em um rabo-de-cavalo.

- Nisso você está certo, é um serviço que alguém tem de fazer. E não é qualquer um que consegue agüentar, sabe? Se você for do tipo que se assombra com fantasmas, pode esquecer. Eles te perseguirão. Quanto a mim... Sinceramente, não me importo.

- Não tem pesadelos?

- Às vezes, como qualquer outra pessoa. – Passou uma camada de batom do mesmo tom de seu esmalte nos lábios. – Mas pesadelos são apenas sombras. Não correspondem à realidade.

- Definitivamente, gatinha, não consigo entender... – O homem disse, enquanto se sentava apoiando as costas na cabeceira da cama.

- Não peço que entenda, nem o julgo por isso... – Ela disse secamente enquanto colocava os sapatos.

Julgamentos de valor... Era submetida a eles o tempo todo. Ele mesmo não dissera que ela carregava a morte? E não era sempre diante de um julgamento de valor que estava? Não era a criminosa, a assassina, a impiedosa? Não estava fazendo coisas erradas? Não deveria mofar numa cadeia ou ser morta assim como as pessoas que matou? Não diziam até mesmo que iria arder no fogo do inferno?

No fundo, quem se importava com tais juízos?

- A propósito... – Ela disse, enquanto colocava a bolsa e pegava sua pistola 9mm com silenciador, pequena proteção pessoal para quando não estava trabalhando.

- O que foi, gatinha?

- Eu menti. Na verdade, não sou uma policial do esquadrão de elite. Sou, isso sim, uma assassina bem paga para eliminar pessoas que são entraves para planos de outras pessoas. Sem juízo de valor, sem mocinhos e sem bandidos. Apenas interesses, não mais do que isso. Nem bem e nem mal, apenas o melhor pagamento.

Olhava para sua arma de leve, sem encarar o companheiro. Não precisava olhar para ele para perceber a expressão de choque em seu rosto. Continuou a falar.

- Para sua própria segurança – e também para a minha – é melhor guardar essa informação consigo e levá-la para o túmulo... Mas sabe? Foi uma noite divertida. Foi um prazer encontrá-lo.

- Igualmente... – Disse ele, ainda surpreso e chocado.

- Adeus.

O corpo do homem estava na mesma posição, porém se inclinava levemente para um dos lados e o sangue jorrava abundante pelo lugar onde a bala tinha entrado em sua cabeça. Melhor assim. Ele não precisaria lhe mandar flores no dia seguinte agora...

Colocou a pistola na cintura, camuflada entre calça e camiseta e saiu do quarto de hotel. Não perguntara o nome do companheiro, só agora se dava conta disso.

Não tinha importância. Fantasmas não precisavam de nomes.

***
Não custa deixar um comentariozinho, né? ^^
Então até terça que vem. ^^

segunda-feira, setembro 05, 2005

O Jantar

Checou pela última vez na geladeira a temperatura exata do vinho antes de voltar para a sala, não sem antes conferir os pratos e velas dispostos harmonicamente na mesa de jantar. Tudo estava pronto para ser especial, a pessoa que esperava era a mais especial de todas! Era aquela que fazia sua vida ter sentido, seus dias serem mais alegres e seus momentos mais inesquecíveis.

Aquele era mais um dia dos namorados que passariam juntos. Quantos anos já compartilharam juntos? Muitos... Ainda não tinham definitivamente se casado porque faltava algum suporte financeiro, mas seria coisa de pouco tempo até o momento decisivo.

Tinha passado todo o dia preparando aquele jantar especial. Ele trabalharia em outra cidade, não poderiam passar o dia juntos, mas que pelo menos pudessem ter alguns momentos juntos naquela noite. O prato predileto, velas, vinho, sobremesa, um bom filme para assistirem depois, colcha nova na cama... Tudo para que ele tivesse ótimas recordações daquela noite.

Passara a tarde também se arrumando – salão de beleza, vestido novo, um pouco de maquiagem. Afinal, ele não merecia ter a namorada mais bonita do mundo? Não queria ver o sorriso de agrado e surpresa dele e um sincero “como você está bonita!”.

Olhou o relógio. Oito e meia, ele já devia estar chegando. Respirou fundo e sentou-se em um dos sofás, olhando as luzes da cidade pela janela e esperando por seu amado. Um sorriso iluminava seu rosto, gerado pela expectativa da noite que chegava.

Oito e quarenta e cinco. Onde ele estava? Deveriam ser os engarrafamentos da cidade, pensou. Ligou a televisão para assistir o resto do jornal, certamente passaria alguma coisa sobre trânsito nele. Dentro de pouco tempo ele chegaria...

Estava começando a se irritar quando a novela terminou e ele ainda não tinha chegado, cerca de uma hora e pouco depois. Quem ele pensava que ela era por um acaso, que estava ali para ficar plantada pelo resto da noite esperando por ele? Que ela tinha cozinhado à toa, passado o dia se arrumando à toa? Como ele podia ter tão pouca consideração daquela forma? Pegou o celular e apertou algumas teclas, apenas para ouvir que aquele número estava desligado ou fora de área. Quase arremessou o aparelho na parede.

Pegou o controle-remoto e começou a trocar de canal freneticamente. Não queria ver TV, queria estar junto de seu amado! Pouco importava qual programa estava passando, queria que ele estivesse ali naquele momento, que falta de consideração com ela! Tirou as sandálias para poder deitar no sofá e ver algum filme interessante que tinha encontrado, pelo menos assim se distraía um pouco enquanto aquele desalmado não chegava.

Era meia-noite em ponto quando percebeu que estava com fome. Não, aquele jantar era especialmente para ele, não podia fazer isso! Mas, pensando bem... Naquele horário ele ainda não tinha chegado! Será que ele tinha se esquecido? Pegou o celular novamente para novamente ter um acesso instantâneo de fúria. Ligou para o telefone da casa dele – quem sabe ele não tinha esquecido? -, mas ouviu o telefone chamar e chamar e ninguém atender. Será que aquele desgraçado sem consideração tinha saído com os amigos e se esquecido dela? Ao pensar nisso caminhou em fúria até a cozinha, onde devorou parte do jantar especial. Se ele não tinha consideração ela também não tinha que ter!

Voltou para sala, bufando de raiva. Ele que esperasse de novo jantarzinho especial, filminho e noite romântica de novo, ele que esperasse! Porque depois daquele bolo iria ficar sem!

Foi perceber que tinha adormecido no sofá apenas quando o clarão de um relâmpago atravessou a janela, acordando-a. Uma grossa tempestade, iluminada a todos os momentos por raios apavorantes e trovões assustadores, caía. Naquele momento, sentiu como se uma lança atravessasse seu coração. Em todos aqueles anos, seu amado nunca deixara de avisar quando precisaria se atrasar, quando tiver algum problema, quando algum imprevisto ocorrera! Naquele momento também se lembrara de que naquele dia ele tinha ido a outra cidade, teria de enfrentar a estrada para poder vê-la... Será que tinha acontecido algo de grave?

Ao pensar nisso, sentiu as lágrimas rolarem por seu rosto e estragarem o que tinha sobrado da maquiagem. Tinha sido tão injusta em pensar que ele se esquecera! E como estava agoniada, pensava em acidentes de carro, ambulância, más notícias... Não, não podia ser! Como desejava tê-lo perto de si, seria capaz de abrir mão da eternidade para tocá-lo naquele momento, diante de tantos pensamentos ruins!

Depois de algum tempo chorando, que não foi capaz de mensurar, foi surpreendida pelo toque suave da campainha. Rapidamente correu para abrir a porta, apenas para vê-lo do outro lado com um buquê de flores já murchas e com a roupa molhada pela suja. Abraçou-o com toda sua força, enquanto sentia as lágrimas voltarem. Como aqueles braços gelados pela chuva pareciam reconfortantes naquele momento! Sentiu a mão dele percorrer seus cabelos e sua voz dizer:

- Deixei você preocupada? Desculpe, desculpe... O pneu furou no meio do caminho, tentei te avisar mas o celular não pegava de jeito nenhum. Mas vim aqui, não podia deixar nosso jantar de lado.

- Não tem importância... – E não tinha mesmo.

Sentiu que ele a afastava de leve e a observava, sorrindo. Olhos inchados de tanto chorar, maquiagem borrada, cabelos despenteados por ter adormecido! Sentiu uma vergonha enorme de recebê-lo daquele jeito.

- Você está linda! – Disse ele, o mais sinceramente possível.

Abraçou-o, sorrindo e chorando. Era por isso que estavam juntos já há tanto tempo, comemorando com tanto entusiasmo mais um dia dos namorados.

***

Sim, sei que alguns já leram esse texto antes, mas realmente gosto muito dele.
Não houve tempo hábil para preparar algo inédito, mas espero que este seja do agrado de vocês. ^^

Até terça que vem!