-- Que lugar... estranho.
Foi tudo o que aquele jovem pôde dizer enquanto observava por trás do visor do capacete. Bairro estranho aquele e não conseguia enxergar o número de onde o pedido tinha vindo! Todas as casas pareciam abandonadas, as poucas vidraças ainda existentes quebradas, a pintura descascada e as paredes cheias de infiltrações, não havia nenhuma pessoa andando pela rua, um único poste iluminava a rua... Aquele lugar exalava decadência, obviamente tinha sido abandonado, como acharia alguém que ainda morava ali?
Não tinha muito tempo para procurar, também, levara mais de uma hora para conseguir encontrar aquela rua! Não que fizesse sentido que uma pessoa naquele lugar encomendasse uma pizza em uma pizzaria qualquer da Zona Leste, pois não seria fácil chegar ali antes que o pedido se transformasse em uma borracha fria, mas quem era ele para questionar a clientela?
O pensamento pareceu coincidir com o toque do celular em seu bolso, que ele se prontificou a atender:
-- Onde você se meteu, bambino?
-- Estou fazendo a entrega, senhor Nestor.
-- Ma che, onde você foi se meter? O cliente ligou aqui perguntando pela pizza, mandei o Danilo fazer a entrega e ele já voltou enquanto você passeia por aí! Vou descontar a pizza e a gasolina do seu ordenado!
-- Mas eu estou aqui na rua Alfredo Flores procurando o número 466!
-- Alfredo Flores? Enlouqueceu? Era rua Augusto Flores, três quarteirões para cima da pizzaria!
-- Mas... - O jovem entregador olhava novamente o bilhete onde o endereço fora anotado e lá constava perfeitamente Alfredo Flores!
-- Não me venha com desculpas furadas, quero você aqui imediatamente ou não vai ter emprego algum amanhã, Henrique!
O entregador ainda olhava, atônito, para o celular em sua mão, após encerrada a chamada. Tinha sido mandado para o endereço errado, naquele lugar abandonado, correra todos os riscos possíveis de assalto e ainda levara uma bronca do chefe? Era demais para a cabeça dele!
Colocou o telefone no bolso rapidamente, enquanto observava que a luz do poste começava a piscar de uma forma agitada. Era visível que não estava sendo um bom dia, agora era melhor dar partida na moto e sair dali o mais rápido possível! Porém, quando se preparava para sair, pôde ver uma pessoa andando na rua perpendicular àquela, passando pela esquina entre as duas ruas.
Ao observá-la, percebeu se tratar de uma menina, que olhava assustada para os lados, como se estivesse procurando algum lugar e que toda aquela atmosfera de decadência a apavorasse. Que perigo, pensou, como uma garota, sozinha, podia se arriscar a ficar por ali? A chance de que aquele passeio não acabasse nada bem era alta demais para ser ignorada!
Contrariando o próprio bom-senso, Henrique parou a moto em algum canto um pouco mais escondido e tirou seu capacete, guardando-o. Com um suspiro de auto-reprovação, tirou o celular do bolso apenas para desligá-lo e evitar qualquer outra ligação do chefe naquele momento. Para ser sincero, não sabia por que estava fazendo aquilo, mas havia um senso de necessidade dentro de si que não podia ignorar.
Com passos leves, começou a seguir a garota, para se assegurar que tudo terminaria bem para ela...
Sabrina estava apavorada, enquanto observava as casas abandonadas com a pouca luz que havia naquele lugar. Por que o Professor Andrade marcara um encontro em um bairro como aquele? O motorista do táxi se recusara a subir aquela rua, desde alguns quarteirões atrás estava andando a pé, sozinha. A cada passo, uma maior dose de medo era injetada em seu sangue. O que cada esquina escura daquelas poderia lhe reservar?
E aquela sensação que começara pouco antes, de que estava sendo observada? Sentiu o sangue congelar em suas veias, enquanto tornava-se cada vez mais difícil manter o passo. Logo encontraria o Professor Andrade e estaria segura, sua vida não correria risco muito maior do que por aquelas ruas!
Pôde ver um único prédio iluminado pouco a frente. Verificou o número, era exatamente ali o ponto de encontro. Não demorou muito para encontrar uma porta aberta e escadas que levavam ao subsolo iluminadas, como se a trilha já estivesse preparara para ela. Desceu-as devagar, com a esperança de que logo tudo estaria esclarecido e poderia voltar para sua casa!
No final da escada, havia um pequeno corredor e uma porta, também aberta. Atravessou-a para encontrar um porão ou depósito, com várias caixas de papelão e objetos velhos e diversos espalhados pelo chão. Podia ver também duas cadeiras entre as caixas e, pouco à frente delas, um homem que observava um relógio, de pé.
-- Professor Andrade! - Ela disse, com alegria na voz.
-- Bem na hora... - Após dizer isso, a garota ouviu o estrondo da porta atrás de si que se fechava. - Venha cá, Sabrina, e sente-se, temos muito a conversar.
A jovem aproximou-se das cadeiras e sentou-se rapidamente. Tinha tantas coisas a perguntar! Será que todos estavam bem, que tudo não passara de um susto? E o que estavam fazendo naquele lugar isolado e abandonado, por que não se encontravam em algum escritório do centro da cidade ou em algum lugar mais confortável? Como será que o chefe estava se sentindo com todas as perdas sofridas? Ao observá-lo novamente, percebeu que ele não se sentara e não a olhava diretamente, mas apenas para seu relógio de pulso. Ele voltou a falar:
-- Amanda me contou que aconteceram alguns problemas pela manhã e ela te mandou para casa. Você dizia ter certeza de que o laboratório seria destruído exatamente naquele dia e que deveria avisar a todos e ela pensou que se tratavam de delírios.
-- Sim! - Sabrina afirmou com convicção. - Eu queria avisar a todos para que pudessem fugir e evitar o pior!
-- Sabrina... Como você sabia que isso estava para acontecer exatamente hoje?
A jovem sentiu toda a cor escapar de seu rosto ao olhar diretamente para os olhos do cientista logo a sua frente, que agora a encarava. Não era o olhar de alguém que tinha perdido seu local de trabalho ou seus experimentos, mas de uma besta selvagem, de um demônio cujo ódio mais profundo tinha sido despertado. Parecia não estar olhando mais para o mestre simpático, mas sim para um monstro. As palavras morreram em sua garganta antes que pudesse formulá-las.
-- É uma pergunta simples, minha cara. Como você sabia que isso aconteceria? O que você andou ouvindo pelos cantos?
-- Eu... eu não... eu não... - não conseguia formular uma frase, mas de qualquer forma, como ele iria acreditar que ela simplesmente sabia? E, afinal, por que ela deveria saber de antemão de um acidente?
-- Eu quero uma resposta! - O cientista colocou as mãos sobre seus ombros e a sacudiu, antes de olhar novamente diretamente para seus olhos. - E pode ter certeza, tenho vários meios de tirar essa resposta de você! Portanto, pense direito...
O pânico fazia com que não conseguisse raciocinar direito, ou que seu cérebro funcionasse um pouco mais rápido do que era capaz de entender. Se havia uma possibilidade racional de que alguém soubesse que um acidente ocorreria antes dele acontecer... então não havia acidente algum! E se o Professor Andrade fazia tanta questão assim de saber por que ela sabia o que iria acontecer, bem como não havia nenhuma sombra de tristeza em suas palavras, mas apenas uma frieza infinita, então... então... então...
Quando concluiu o raciocínio, não pôde controlar o impulso de vomitar.
Henrique observava pela vidraça de uma pequena janela de iluminação do porão o que acontecia em seu interior. Podia ouvir muito pouco do diálogo, mas pelo que tinha conseguido captar, a menina sabia de alguma coisa que não deveria saber! Era melhor continuar a observar para entender o que estava acontecendo.
-- Por quê? - Foi tudo o que Sabrina pode dizer após sua reação mais física do que desejava.
-- Eu faço as perguntas aqui. O que andou ouvindo por aí e de quem andou ouvindo?
-- Não ouvi nada, não sei de nada!
-- Não minta, isso só torna as coisas piores. - Não havia nenhum vestígio de qualquer sentimento na voz do cientista. - Sabe, – disse ele, enquanto passou uma das mãos levemente pelos cabelos loiros da jovem – após um acidente de tamanhas proporções, a perícia demora dias para fechar uma lista de mortos. E que falta faria uma garota de dezesseis anos que nem família tem? O que a impediria de ter morrido enquanto cuidava de algum experimento, inocentemente? - Ele aproximou as mãos para o pescoço da jovem e o pressionou, levemente. - Esse foi o seu destino, Sabrina, afinal, você desaparecerá para sempre. Vai se encontrar com Amanda e com os outros.
A jovem sentiu que o medo se transformava em pânico em seu corpo.
-- Mas eu nunca soube de nada!
-- Não minta. - O cientista apertou com mais força seu pescoço. - Sabe, há muitas maneiras de tirar isso de você e nem todas elas são agradáveis. E, lembre-se: sua vida está em minhas mãos agora.
O professor se afastou, enquanto Sabrina tocava levemente seu pescoço enquanto retomava a respiração agitada e irregular. O que estava acontecendo ali? Em que tipo de pesadelo tinha se metido? E, principalmente, o que poderia fazer para sair dele?
O desespero tomou conta de seu corpo e a fez correr até a entrada da sala, tentando desesperadamente abrir a porta de entrada. Precisava fugir dali, o mais rápido possível! O cientista andou vagarosamente até onde estava e, agarrando seus pulsos, atirou-a no chão, de onde o olhava em desespero:
-- Você realmente acredita que vai escapar daqui hoje? Vamos, é só me dizer aquilo que quero ouvir, não precisa ser uma experiência dolorosa...
O entregador não suportou ver aquelas cenas. Ele precisava fazer alguma coisa, precisava ajudar aquela menina a escapar daquele inferno, não podia ficar simplesmente observando! Distraído como estava, não percebeu que alguém se aproximara dele e encostara um taser em suas costas, para paralisá-lo e eliminar sua visita indesejada.
“Estranho”, pensou, “cócegas?”. Hora imprópria para sentir cócegas em algum ponto de suas costas. Ao passar a mão na região lombar para entender o que estava acontecendo, percebeu o objeto estranho. Ao virar-se, percebeu o capanga atrás de si, impressionado porque sua arma não surtira efeito!
Antes de perguntar o que estava acontecendo, Henrique fechou a mão e deu um soco no capanga. Para seu espanto, ele caiu no chão em espasmos, como se tivesse tomado um choque de alta voltagem. Ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo, o entregador colocou o taser no bolso de sua jaqueta e correu para dentro daquele prédio. Era melhor salvar aquela garota e sair dali o mais rápido possível, depois procuraria alguma explicação!
-- Eu não sei de nada, nada! - Sabrina disse, com um tom de súplica na voz.
-- Mentiras não vão te salvar e é bom que saiba disso. - O cientista se aproximou de onde a menina estava caída e levantou-a, imobilizando seus braços. - Já que não quer responder por bem, então vou ter de tirar a resposta de você, e não pense que haverá algum príncipe encantado ou super-herói para salvá-la...
-- Não – ela disse, suplicando – Não, não... - as lágrimas teimavam em cair de seus olhos.
Neste momento, o som da porta de entrada que era arrombada fez com que a atenção do cientista e da jovem se fixasse em um estranho jovem com uma jaqueta que entrava naquele momento na sala e dizia:
-- Solte a garota.
-- O que você está fazendo aqui? - O cientista disse, espantado.
-- Não interessa. Eu quero que solte a moça, só isso.
Sabrina, aproveitando o momento de surpresa de seu antigo chefe, soltou-se e correu em direção ao desconhecido, sua última atitude consciente antes de desmaiar em seus braços. Henrique, antes de qualquer outro acontecimento, pegou-a no colo e saiu correndo pelo lugar onde tinha entrado, o mais rápido possível. Ao sair, perceber outros dois homens tentando socorrer o capanga que tinha derrubado, e que foram em sua direção ao vê-lo. Antes que conseguissem fazer alguma coisa, correu até onde estava sua moto, ajeitou Sabrina da melhor forma que conseguiu e deu a partida, deixando apenas um rastro de poeira atrás de si...
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