terça-feira, janeiro 17, 2006

Auto de Fé

A multidão se aglomerava em um grande círculo em volta de uma estrutura de madeira pouco à frente, estavam visivelmente ansiosos para o julgamento daquele dia. Era a bruxa herege, a maldita que quase jogara todo o reino nas chamas com sua feitiçaria! Apenas o fogo poderia expurgá-la, apenas o sofrimento das chamas consumindo sua carne poderia poupá-la dos castigos eternos do Outro Lado! Pobre infiel!

A agitação popular era tão grande que, em sua cela, ele pôde ouvir tudo. Suspirou, em desespero, adivinhando o que estava acontecendo do lado de fora das muradas e isolamento. As chamas a consumiriam, estava acorrentado, preso, simplesmente ela morreria! Como queria romper as correntes, ter uma última chance, libertá-la e fugirem!

Como queria... Salvá-la das chamas...

***

Os tambores tocaram, anunciando que a diversão esperada por todas aquelas pessoas começaria em questão de minutos. De um dos cantos da praça, os guardas a traziam – vestindo uma túnica simples de linho cru, descalça, os cabelos negros caindo por seu rosto. As olheiras denunciavam as noites impossíveis de serem dormidas, assim como o desconforto da noite anterior especialmente cruel. Podia perceber a expressão dos aldeões: era como se fosse a maior das criminosas, que merecia o pior dos castigos!

Recebeu uma cusparada no rosto de um deles, assim como as vozes que a chamavam de bruxa, assassina, herege... Ah, se eles soubessem da mísera metade de tudo o que acontecera até aquele momento!

No interior da praça aberta, uma pilastra. Os guardas não tardaram de amarrá-la a ela, sem receber muita resistência. Já não sabia o que pensar, não encontrava alguma saída possível à sua situação. Era quase uma ilusão distante os gritos das pessoas ao redor, a sentença proferida pelo verdugo – morreria na fogueira, aquilo não era óbvio? Ele dizia uma lista de seus supostos crimes e atrocidades para a população estupefata, que começava a clamar em uníssono pelo fogo.

Olhou para o canto, para as muradas internas do castelo, onde em uma sacada o irmão observava tudo com a face mais fria possível. Parecia até mesmo ver um sorriso em seu rosto, como se sua morte fosse o maior deleite para a sua alma, como se estivesse se deliciando em vê-la queimar...

As tochas foram atiradas aos seus pés e o fogo se espalhou depressa ao seu redor. O calor logo se tornou insuportável, assim como a fumaça que a impedia de respirar. Os olhos já estavam impedidos de ver qualquer coisa, restou a ela apenas fechá-los para não serem ofuscados pela chama e pela fumaça. Os pés ardiam, os pulmões só a faziam tossir, o calor era insuportável, além da terrível expectativa de que logo as chamas devorariam seu corpo.

Só restava a ela clamar por um milagre quase impossível, por um salvador improvável que a libertasse de tal suplício...

E, caso ele realmente viesse, que ganhasse a corrida contra a Ceifadora que se aproximava depressa...

***

Sim, texto antigo.
Sim, parte de um universo qualquer
Não, não muito inspirada ultimamente.

Um comentário:

Anônimo disse...

a heresia pode estar fora de moda, mas todo mundo se sente como uma bruxa acorrentada às vezes.