terça-feira, janeiro 31, 2006

Ilusões Estilhaçadas

A jovem maga estava parada diante de seu espelho observando sua imagem refletida. Por quantos dias não esperou ali a imagem da terra distante, do homem que amara ao pôr os olhos em um primeiro momento? Das roupas estranhas, do lugar estranho... Da comunicação entrecortada, de poderem se ver sempre, mas nunca se encontrar; da esperança alimentada todo o dia que estariam juntos.

Esperança vã.

Seus sentimentos eram completamente sinceros e se entregara a eles com todas as suas forças. Negligenciara seus estudos e práticas, queria passar os dias diante daquele espelho, o único elo, a única razão, o único contato...

Buscara magias antigas e proibidas, experimentara diversos símbolos arcanos, colocaria todas as suas forças para poder estar junto dele. Sabia ser praticamente impossível, sabia estar esmurrando a ponta de uma faca, mas amava-o. Amava-o como se fosse aquela sua causa, sua bandeira.

Desnecessário dizer que tudo dera errado – e como odiara sua própria realidade por isso! Sentira-se sem ar, presa a uma vida enfadonha e imbecil, desejara trocar sua alma para poder estar com ele, desejara morrer, desejara nunca ter nascido. Era apenas ele, do outro lado do espelho, que importava, não sua vida e atribuições medíocres de mera aprendiz.

Não que ele demonstrasse sentir o mesmo ou o mínimo interesse de fazer o caminho inverso para o seu lado do espelho. Recebia palavras de carinho, mas não as palavras que desejava ouvir. Seria apenas uma diversão nas mãos dele, um alegre passatempo por falta do que mais fazer? Temia perguntar, pois temia a resposta. Chegou à conclusão de que ser romântica era sinônimo de estupidez.

Mas ainda acreditava. A esperança ainda estava viva, apesar da plena consciência de sua impossibilidade.

Até aquele dia. Até a conversa decisiva poucas horas antes, até perceber que sua vida estava ali, onde sempre esteve: em seus afazeres, estudos e práticas. Encontrara a ênfase de sua realidade, as ilusões de sua mente desapareceram quase instantaneamente ao se dar conta disso.

Algum dia realmente o amara? Não duvidava disso.

Mas já não havia esperança.

O impacto de um punho fez com milhares de pedacinhos de vidro brilhante refletissem sua imagem e se espalhassem pelo seu quarto. A mão da jovem maga sangrava e doía, mas tinha uma certeza em sua mente que a deixava aliviada – e até mesmo feliz.

Estava livre de sua prisão de vidro.

***

Altamente subliminar. Apesar de atrasado no tempo.

terça-feira, janeiro 17, 2006

Auto de Fé

A multidão se aglomerava em um grande círculo em volta de uma estrutura de madeira pouco à frente, estavam visivelmente ansiosos para o julgamento daquele dia. Era a bruxa herege, a maldita que quase jogara todo o reino nas chamas com sua feitiçaria! Apenas o fogo poderia expurgá-la, apenas o sofrimento das chamas consumindo sua carne poderia poupá-la dos castigos eternos do Outro Lado! Pobre infiel!

A agitação popular era tão grande que, em sua cela, ele pôde ouvir tudo. Suspirou, em desespero, adivinhando o que estava acontecendo do lado de fora das muradas e isolamento. As chamas a consumiriam, estava acorrentado, preso, simplesmente ela morreria! Como queria romper as correntes, ter uma última chance, libertá-la e fugirem!

Como queria... Salvá-la das chamas...

***

Os tambores tocaram, anunciando que a diversão esperada por todas aquelas pessoas começaria em questão de minutos. De um dos cantos da praça, os guardas a traziam – vestindo uma túnica simples de linho cru, descalça, os cabelos negros caindo por seu rosto. As olheiras denunciavam as noites impossíveis de serem dormidas, assim como o desconforto da noite anterior especialmente cruel. Podia perceber a expressão dos aldeões: era como se fosse a maior das criminosas, que merecia o pior dos castigos!

Recebeu uma cusparada no rosto de um deles, assim como as vozes que a chamavam de bruxa, assassina, herege... Ah, se eles soubessem da mísera metade de tudo o que acontecera até aquele momento!

No interior da praça aberta, uma pilastra. Os guardas não tardaram de amarrá-la a ela, sem receber muita resistência. Já não sabia o que pensar, não encontrava alguma saída possível à sua situação. Era quase uma ilusão distante os gritos das pessoas ao redor, a sentença proferida pelo verdugo – morreria na fogueira, aquilo não era óbvio? Ele dizia uma lista de seus supostos crimes e atrocidades para a população estupefata, que começava a clamar em uníssono pelo fogo.

Olhou para o canto, para as muradas internas do castelo, onde em uma sacada o irmão observava tudo com a face mais fria possível. Parecia até mesmo ver um sorriso em seu rosto, como se sua morte fosse o maior deleite para a sua alma, como se estivesse se deliciando em vê-la queimar...

As tochas foram atiradas aos seus pés e o fogo se espalhou depressa ao seu redor. O calor logo se tornou insuportável, assim como a fumaça que a impedia de respirar. Os olhos já estavam impedidos de ver qualquer coisa, restou a ela apenas fechá-los para não serem ofuscados pela chama e pela fumaça. Os pés ardiam, os pulmões só a faziam tossir, o calor era insuportável, além da terrível expectativa de que logo as chamas devorariam seu corpo.

Só restava a ela clamar por um milagre quase impossível, por um salvador improvável que a libertasse de tal suplício...

E, caso ele realmente viesse, que ganhasse a corrida contra a Ceifadora que se aproximava depressa...

***

Sim, texto antigo.
Sim, parte de um universo qualquer
Não, não muito inspirada ultimamente.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Onda de Angústia

Era como se a própria percepção da realidade tivesse alterado. Era como se de repente tivesse sido eu tragada por uma nova dimensão, como se o próprio ar tivesse se modificado ou as cores de todas as coisas borrado e se tornado opacas. Estava decepcionada. Não com uma pessoa em especial, mas com todas as circunstâncias, com todo aquele dia que começara estranho.

Olhei meus trajes de sacerdotisa e senti-me ridícula. Tive vontade de despir-me, correr nua pelos campos até ser apanhada pela primeira besta faminta com ganas de me devorar. Ser abandonada às aves de rapina, entregar meu corpo por minha vontade, mas antes do tempo, ao ciclo natural de renovação deste mundo. Invejei as mesmas aves que em meus devaneios se alimentariam de meu cadáver. Elas tinham asas. Elas podiam voar, podiam ver o mundo do alto. Eu não, era reles filha do chão, por mais que meu coração ansiasse as alturas.

Minhas pernas me levavam para os campos longe do templo, como se sair correndo me afastasse de meus problemas ou preocupações. Fui detida por uma pedra no meio do caminho, que me fez tropeçar e me derrubou na grama. As mãos ardiam, esfoladas. Foi o suficiente para que minhas lágrimas, difíceis de sair, escorressem com força por meu corpo.

Chorar era realmente tudo o que desejava. Sou o tipo de pessoa que não sabe externar seus sentimentos, logo apesar das lágrimas encherem os olhos, para mim é difícil chorar. Conseguia liberar toda minha tristeza, angústia e frustração naquele momento, toda a frustração de alguém que lutara mas, na hora mais decisiva, vira tudo se perder. Era a dor de quem fora derrotada por circunstâncias maiores, mas que acreditava serem passíveis de contorno.

Olhei para os céus avermelhados apenas para ver um relâmpago cruzá-los. Estava eu em campo aberto, mas não me importaria se fosse fulminada por um deles. Ou melhor, que algum dos deuses resolvesse ser menos sádico que meu próprio destino e me fulminasse, me libertando da prisão de um corpo tão medíocre!

A chuva não demorou a cair sobre meu corpo, enquanto eu me deitava no solo, fazendo com que lágrimas, gotas e lama se misturassem. Meus trajes alvos enlameados, todo o meu ser sujo...

Levantei-me, limpando meus olhos e sentindo o frio das gotas em minha pele. Finalmente as lágrimas tinham secado e, após me levantar, pus-me a girar tal qual uma criança embalada pela chuva: era bom limpar minha alma. Tinha ganhado um banho para me limpar de toda a energia negativa.

***

Originalmente escrito em 26/10/05