Não acreditava naquilo que podia ver depois de tantos anos de buscas, privações e desafios. Talvez seus olhos estivessem lhe pregando uma peça novamente, assim como já lhe ocorrera várias vezes desde que sua missão começara, desde que colocara todas as suas forças para recuperar aquilo que lhe era mais caro. As mãos que seguravam o comunicador já danificado pelo tempo e que há muito estava silencioso, sua única esperança e alento por todo aquele tempo, tremiam devido à surpresa – e ao nervosismo.
- Daniel... – Foi tudo o que pôde dizer.
Apesar de todo o tempo que havia passado, eram os mesmos olhos. O mesmo olhar dirigido a ela, a mesma surpresa, a vontade de correr e jogar-se em seus braços, de dizer que não havia passado tempo nenhum e estavam prontos para recomeçar do ponto onde haviam parado. Que ela ainda era a aluna do sexto ano da Academia, que todas as noites fugia dos alojamentos para encontrá-lo nos jardins e verem juntos as estrelas, que ele ainda era o melhor aluno do décimo-segundo e penúltimo ano.
Mas, muito além dos dez anos que separavam aqueles tempos dos dias atuais, havia um turbilhão de acontecimentos. Depois de um ano da missão de seu amado, o comunicador pessoal que parara de funcionar trazendo notícias estranhas e diferentes daquelas oficiais repassadas aos alunos da Academia, a luta e desafios para se tornar pilota das Forças Especiais – tivera de enfrentar as limitações de seu próprio corpo, como a vertigem na falta de gravidade, até muitos professores e colegas para conseguir pilotar – e todos os fatos da guerra – as lutas, mortes e baixas.
E, agora que finalmente estava frente a frente com o homem que nunca deixara de amar, as próprias roupas denotavam as mudanças: ela, com os trajes de pilotagem da Aliança Terrestre; ele, com as roupas simples dos combatentes da União Marciana. Um desertor. Um dos pilotos mais promissores das forças terrestres transformado em desertor. Suas ordens claras para o encontro com desertores seria tirar sua pistola do coldre e atirar sem hesitar, mas sabia muito bem que a explicação pela deserção era muito mais profunda do que as ordens recebidas.
- Stella...
Estava definitivamente surpreso. Se sobrevivera ao ataque que destruíra seu esquadrão, se sobrevivera ser capturado e tudo o que passara desde então no solo marciano tinha ocorrido por sua vontade de reencontrá-la e, posteriormente, tirá-la da Academia para que pudessem viver juntos em algum lugar isolado. Depois, passou a lutar por um ideal que parecia esquecido naquele mar de sangue derramado e metal retorcido: justiça. No sentido de que toda aquela guerra talvez fosse contra um inimigo errado, contra as pessoas erradas. Talvez porque terrestres e marcianos fossem tão iguais em essência que não fazia sentido nenhum continuar toda aquela destruição. Aquilo que ambos almejavam, a terra prometida, talvez estivesse mais perto do que podia parecer ou mesmo que eles pudessem supor.
Os trajes de sua antiga amada o espantaram: era a mais alta divisão de pilotos da Aliança, aquela aonde apenas aqueles que nasceram para a pilotagem podiam estar. Pelo que se lembrava, tudo indicava que Stella seria uma oficial de base, já que não apresentara aptidão para a pilotagem. Teria ela tentado seguir seus passos? A estrelinha se tornara uma supernova?
- Não pensei que as coisas pudessem mudar tanto quando nos reencontrássemos. – A vontade era a de se jogar nos braços do amado, mas havia coisas muito maiores do que sua própria vontade em jogo.
- Estou surpreso em vê-la com este uniforme, Stella.
- Se tive forças para enfrentar tudo o que enfrentei, foi pela vontade de te reencontrar. Mas agora... Não sei o que há comigo. Sou pilota da Aliança, você é mais do que membro da União, é um desertor! Minhas ordens são claras para matar os desertores...
- Poderia matá-la por estarmos em lados opostos, mas não o desejo. Aliás, mesmo nós dois estando em território neutro, eu poderia levá-la como minha cativa e cobrar um resgate. Talvez a libertação de alguns de nossos líderes. Mas não desejo fazê-lo.
A oficial da Aliança apalpava a arma em sua cintura, enquanto o membro da União fazia o mesmo por seu lado. Era o maior desejo de ambos trocar um abraço, um beijo, dizerem baixinho ao pé do ouvido tudo aquilo que tinham feito naqueles dez anos, mas muito mais do que os seres, as posições que ocupavam, os lados que tinham abraçado eram maiores do que suas próprias identidades.
- Faz dez anos desde que nos vimos pela última vez... Já não sou uma menina e você já não é aquele jovem de olhos brilhantes e futuro promissor.
- Não me esqueço de seu olhar naquele dia. Fazendo todo o esforço do mundo para ficar séria como convinha a uma aluna, mas com a alma destroçada. Pude ver suas lágrimas sem que precisasse chorar.
- Eu sei... – Stella olhou para o chão com um sorriso tímido, mas logo recompôs-se. – Mas agora as posições mudaram.
- Não, Stella, elas nunca mudaram. Nós sempre fomos peças em um tabuleiro, somos fantoches das pessoas muito acima de nós, daqueles realmente responsáveis por essa guerra. Estamos todos lutando contra o inimigo errado, enquanto as buchas de canhão morrem, os verdadeiros senhores da guerra se divertem nas cidades douradas de Titã. Para eles somos apenas peças que podem ser repostas, não muito mais do que acessórios de suas armas de brinquedo. São eles os semeadores da discórdia, é por causa de todo o maldito dinheiro para manter aquele paraíso dourado que tudo isso está acontecendo!
- Você agora está do outro lado, Daniel. É um desertor do lado dos desertores... Você teve de ver as plantações queimadas pelas frotas marcianas e posteriormente crianças morrendo de fome? Ou já se esqueceu de sua própria infância, dos fogos no céu para permitirem que tivessem uma vida! E tudo isso culpa daqueles que abandonaram nosso planeta à míngua e depois de séculos de reestruturação querem tomá-lo de volta! Você acha isso justo? Acha justo que na época da crise eles desapareçam e quando os frutos brotam eles retornem, sendo que nada tiveram de sofrer?
- E você não entendeu que a diáspora foi necessária? Caso não houvesse uma partida, hoje em dia nem mesmo existiríamos? E não foi pela sede de lucros de uma pequena parcela que a situação ambiental da Terra se tornou insustentável? Parcela essa que depois de passar algum tempo em Marte, partiu para suas cidades douradas e deixou o povo que procurava uma nova vida numa terra sem lei? Deixou crianças morrendo de fome enquanto seus pais eram assassinados por um pedaço de chão? Que a única esperança de salvação acabasse por se tornar um caos ainda maior do que aquele de onde tentaram fugir?
- E para isso deve-se destruir a vida de outras pessoas? Não foi você mesmo que disse que tudo isso é um jogo daqueles que estão acima de nós? Pois muito bem: por que não romper com esse jogo? Sabe por que tive forças para superar os primeiros anos de Academia, ou você já se esqueceu? Não queria que outras crianças tivessem o mesmo destino que eu, perder seus pais para uma guerra com essas proporções. Não queria que houvesse mais órfãos de guerra como eu, queria contribuir para que as pessoas tivessem uma vida de paz! Mesmo que para isso fosse necessário que três ou quatro perecessem, mas fosse pelo bem de todos os outros! Até o dia em que esse inferno puder ter fim!
Daniel olhou para o chão rapidamente. O reencontro sempre estivera em seus pensamentos, não deixara de pensar em nenhum dia dos últimos dez anos como seria ter sua Stella novamente a seu alcance. “Sua”... Como se não tivessem ocorrido tantas e tantas coisas naquele período. Como se não estivessem em lados opostos numa guerra muito maior do que eles próprios. Como se não fossem peças opostas que se confrontavam em um tabuleiro, com a função de anularem-se mutuamente.
O pensamento comum a ambos era o quanto tinham esperado e ansiado por esse dia, mas quando ele finalmente chegara, já não tinham a mínima certeza. O que efetivamente sentiam um pelo outro naquele exato momento? Além de toda a paixão juvenil e de um ideal para seguir em frente, qual era a resposta para todas as questões de anos e as vontades guardadas por todo aquele tempo?
A única certeza era a de que não havia uma resposta. Em silêncio, contemplavam um sonho envelhecido pelos anos e circunstâncias. Por mais que tivessem vontade de se abraçar, beijar e repetir que todos os esforços valeram a pena, havia muito mais envolvido do que simplesmente um reencontro de casais. Eram dois mundos – ou seriam duas faces de uma coisa só? – em colisão, sendo que ambos já tinham escolhido qual era seu lado na disputa.
Mas talvez ainda houvesse lugar para antigos ideais. Talvez ainda fosse permitido à oficial da Aliança e ao membro da União continuar sua história individual do ponto onde tinham parado, uma década antes.
Isso se o mundo acima deles permitisse.
***
Daniel e Stella já estiveram aqui antes.
Talvez estejam novamente no futuro.
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2 comentários:
Nossa... Achei teu blog no teu perfil, que achei numa discussão na comu de Berserk do Orkut, e só a url dele já me chamou a atenção... Não seria uma referência, mesmo q por cima, à Glass Prison do DT, certo?
Bom, n li ainda, mas o farei em breve. Bjus ^x^
Eu me lembro do Daniel e da Stella, agora o que me instiga é: o que eles farão no futuro?
tan tan tan taaaan
Bjoooooo!
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